A insustentável leveza dos gatos

Sei que sou gata vira-lata porque só sei chorar na rua.
E gemo de dor e de saudade de casa, mas me secam as lágrimas quando piso na madeira da sala.

Sei que sou gata vira-lata porque me bato pelas esquinas em busca de decifrar o labirinto das ruas, como se a grande verdade sobre a vida estivesse escrita no selvagem registro arquitetônico das avenidas e suas infinitas vias capilares.
Faço questão de me perder e espalhar meu choro irritante de bicho sem casa pelos tranquilos lares dos lados da cidade onde os Heitores são muito bem penteados e a purpurina me faz espirrar, repelindo o carnaval e a tranquilidade em medidas iguais, como se fossem o mesmo vírus.

Sei que sou gata de rua porque nasci e cresci num grande samba de apartamento, mas é na sarjeta que me sento para urrar meus impropérios e amaldiçoar os bons lares tanto quanto a leveza profana dos espíritos coloridos que passam e que só eu pareço ver.
Me perco entre os fúteis nomes que separam um caminho do outro, como se em algum endereço eu pudesse encontrar esse negócio que não sei do que chamar, mas que faz falta em algum lugar dentro de mim.

Tem sempre um lado que pesa e o outro lado que flutua. E sei que sou gata vira-lata porque salto para cima do telhado como se fosse pluma, mas o céu comprime meu peito como uma armadura de chumbo. Apenas a atmosfera me separa do vácuo eterno que trespassa as estrelas. 1 atm. O lado que pesa é espremido contra a superfície do planeta e o lado que flutua se perde no espaço, apático diante da beleza de tudo o que é distante.

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A Deus o que é de adeus e ao padre o que lhe cabe perdoar.
Mas sou gata, pagã e vira-lata
Não fui batizada e não sei me confessar

À Deusa o que é de dar e da mãe o que é de receber
Meu mantra, minha reza
O que ontem era já deixou de ser

E sei que sou gata de rua porque só sei chorar quando a solidão me borra a visão de todo o entorno.
Apago-me e meu lamento é engolido pelo monstruoso ruído das avenidas e minha dor se torna tão insignificante quanto as migalhas que alimentam pombos de praça.

Sei que sou gata de rua porque não pertenço.
Lambo-me as feridas na tácita certeza de que vai passar.
Vou passar.

Tudo passa.

 

 

 

 

 

 

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