Ofélia II

“Eu já nem sei bem do que se trata a vida. Um turbilhão de desutensílios cósmicos girando rápido demais. É como escrever um livro que pega fogo quando se afunda o ponto final. E ninguém nunca lê. E você esquece de cada palavra. E enquanto escreve também não tinha tempo de pensar muito sobre o que escrevia nem ler tão bem o que escrevem os outros e tudo não parece fazer muito sentido, na verdade. E não que isso fizesse qualquer diferença no nosso atual Estado de animal, brutalmente compartilhado entre os mais distintos intelectos. Ao fim, todos mortos. E parece ser uma obviedade lembrar essa profecia nesse momento, mas perceba: em duzentos anos não existe quase que chance alguma de que alguém se lembre de você. E os números só diminuem, mesmo quando avançamos numa linha do tempo otimista onde a humanidade não se destrói num ato inconsciente de suicídio coletivo. Eu passei a noite em claro, sabe? Como se me afogasse nas imagens que se recusavam a decupar-se em palavras inteligíveis. Só sensações. Acho que eu tinha renunciado da escrita por isso. Sabe? Porque é a forma mais elitista de comunicação e a mais egocêntrica, talvez. Entendi, com certo desprezo, a minha própria necessidade de registrar e ridiculamente tentar eternizar cada pensamento autoconsiderado importante nessa minha mísera condição humana de merda. Veja, não faz diferença. Pro cosmo, pro universo… Não faz.”

“Pra mim faz.” Disse a outra.

“Pra mim você não faz mais diferença.” disse a ela, sem pestanejar. Depois parou um milésimo de segundo – desses que só mesmo uma batida de asa de beija-flor pra perceber – e continuou:

“Não mais.” Engoliu a saliva que parecia estar pegada na parte de trás da garganta, porém sem desconforto; como alguém que estala uma articulação todos os dias, por pura rotina.

“Isso deveria me ferir?” perguntou a outra. Um grunhido repetitivo saído do peito da primeira transformou-se em um riso cínico, interrompendo com sutileza a frase.

“A verdade já machucou alguém? Não. Querida, não. A gente se machuca pela mentira, entende? Pela beleza da mentira.” Suspirou de um jeito falsamente romântico. “Veja: se não houvesse a promessa de um céu, doeria tanto o inferno?”

“Você sabe que eu não sou católica.” Disse a outra, como se rebatesse os argumentos de uma criança.

“Nem eu.” – disse ela, repensando, com algum divertimento contido. “Bom, coloquemos desse jeito: será que doeria tanto a inexorabilidade do fim se não houvesse a promessa de um algo mais? De uma vida após a morte?”

A outra calou-se, o que muito lhe satisfez, instigando-lhe a continuidade do discurso.

“Será, portanto, que seria tão insuportável a ideia do esquecimento se nunca houvesse a pretensão da importância? O instante valeria tão pouco se não fosse a falsa ideia de eternidade?”

Parou aí. A outra já não lhe respondia. Mirava o solo.

“Imagino que não, mas nunca saberemos, não é verdade? Já nos foi implantada essa ideia bizarra de propósito numa realidade que sequer consegue seguir as próprias leis sem quebra-las. Sabe, eu perdi o respeito pela ideia de Deus quando me dei conta do quão infantil era a concepção de um pai que, apesar de onipotente e onipresente, insiste na ausência e no silêncio diante da injustiça.”

“Dizem que a fé requer o benefício da dúvida para ter sua legitimidade.”

Respondeu a outra, um tanto tímida.

“Você soa como uma beata.”

“Você soa como uma condenada à morte que pede comida podre como última refeição.” Retrucou a outra, a pena transparecendo entre as letras de um outro sentimento que ela não identificava.

“Olhe, eu me sinto um pouco clichê aqui, mas você soa como um livro de autoajuda pego por engano na livraria.”

“Livros de auto ajuda não falam.”

“O que é muito educado da parte deles, não acha?”

A outra apenas suspirou, como se todas as palavras do mundo não fossem suficientes para ajudar quem não quer ser ajudado.

“Livros de auto ajuda ao menos… Ajudam alguém. Sabe?”

“Claro! Touchè. De fato, eles ajudam financeiramente a quem escreveu e editou suas páginas exageradamente brancas e seus sorrisos amarelados.”

“Mesmo que fosse tão simples, isso é mais do que se pode dizer de você.”

Ela riu. Bastante. Riu com gosto, mas sem volume. A outra nunca vira tanta elegância num riso de auto depreciação.

“De fato. Um brinde a isso, inclusive.”

“Não estamos bebendo.”

“De fato, ainda não. Mas isso será corrigido em breve.”

“Não é a ocasião.”

“Não é sua a decisão.” Disse ela. E como quem torce uma faca enfiada na barriga, continuou: “Nada é seu, aliás.”

Foi um golpe baixo demais. Pareceu não surtir efeito na outra.

“Livros de auto ajuda são os que mais vendem hoje em dia.”

“Me recuso a ajudar as pessoas a encontrarem motivo para a existência.”

“…”

“Seria desleal da minha parte.”

“… E você é leal a…?”

“A ninguém.”

“… Então?”

“Então tampouco me cabe ser desleal a mim mesma.” Respondeu, como se fosse óbvio o que dizia. “Lealdade é um romantismo barato, uma perda de tempo.” Disse ela. “Não me sinto no direito de encher meu peito de pena pra me sentir menos vazia.”

Parou um instante, como se realmente fosse oca por dentro e escutasse sua voz ecoando dentro do corpo.

“Tem uma música que diz assim: ‘não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve/correta, branca, suave, muito linda, muito leve/sons, palavras, são navalhas/ e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém.”

“E você é apenas um rapaz latino americano…?”

Ela riu, mais desgostosa dessa vez. E irônica.

“Queria eu ser um rapaz.”

“…”

“Mas não. Entre eu e Belchior existe apenas a semelhança do reconhecimento da realidade como inexorável filme de faroeste, sem muitas surpresas ao minimamente honesto expectador.”

“Você acredita em destino, então.” Afirmou a outra, em tom de questionamento.

“Certamente que não! Há! Ao acreditar em destino eu estaria admitindo que existe um plano e, assim, desistiria de minha tese ateísta.”

“Você não acredita em Deus, então?”

“Pffff! Você acredita?” perguntou ela, quase incrédula.

A outra reteve a resposta entre os dentes um instante. Abaixou a cabeça e ponderou um instante com os olhos entre as sombras das folhas das árvores.

“Não. Acho que não.”

“Patético, de fato. Mesmo que ele existisse… Eu não acreditaria nele. Uma palavra sequer. Se ele realmente se importasse, se tivesse alguma verdade pra dizer…”
Ela riu, amargurada, como se tivesse que dizer à filha caçula que as amiguinhas riem dela porque sabem que o coelho da páscoa é só uma metáfora.
“Vê? Não existe salvação pra mim; apenas a momentânea depravação durante meu curto período de vida. E quem sou eu pra dizer a alguém como deve viver a própria vida? Sabe, é tão fácil ser infeliz… Quem é o filha da puta que disse algum dia que a gente tem que buscar a felicidade e a estabilidade e a moralidade e o sentido da vida? Não sobra tempo pra nada com toda essa parafernália existencialista. Prefiro que as pessoas vivam como quiserem e acreditem no que quiserem. Não faz a menor diferença, de verdade.”

“Bom, eu acredito em você.”

“Acho que não.” Disse ela, um pigarro rancoroso rastelando na sua fala. “Se você acreditasse não perderia mais um segundo conversando aqui comigo.” Suspirou um instante antes de continuar. “Olha, eu poderia escrever mil livros de auto ajuda porque são a coisa mais fácil do mundo, mesmo porque todo mundo quer a mesma coisa, bem lá no fundo. E está tudo bem. É o kitsch. É o que nos emociona, o que nos une… Como povo… Como espécie… Como… Como… Planeta, talvez?”

Chegaram aos portões do cemitério. A inscrição entalhada em ferro dizia, em bom português: “Nós, ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.”

Ela sorriu. A outra olhou-lhe de soslaio, amargurada por sua súbita alegria.

“Adoro cemitérios.” Disse ela.

“Nota-se.” disse a outra, seca, e seus vultos cruzaram os portões que cortavam o muro da casa dos mortos.

Caminharam por um tempo entre os túmulos de concreto. As formas duras e sóbrias evocando o peso que a morte representava para cada um dos entes queridos deixados para trás.

Ela abriu a boca pra falar sobre isso; falar sobre como os túmulos dizem mais sobre quem fica do que sobre quem já foi. Ia dizer o tanto que estava cagando para o que fosse feito dos seus restos mortais quando batesse as botas, mas foi interrompida por uma frase dita de forma demasiado sutil para ser ignorada.

Se a outra a tivesse proferido um pouco mais alto, talvez ignorasse… Mas não. Ela jamais ignorava os sussurros. Eles eram importantes demais… Não; interessantes demais. Absolutamente preciosos. Tudo que era dito com aparente desvontade lhe apontava a grandeza da ideia. A rejeição da importância era magnífica a seus ouvidos.

“Você parece convencida a despir de sentido tudo o que existe. Esfolar vivo todo e qualquer alento que possa existir para a humanidade.”

“Eu?”

“Sim, você.”

“Ora, isso seria pretensioso da minha parte, você não acha? ” Disse ela. A outra lhe encarava como quem reafirma o que não disse, na espera de que seja entendido com a dignidade do silêncio.

“Não. Veja, se eu escrevesse um livro de auto ajuda…” Um sorriso sarcástico lhe brotou no canto esquerdo dos lábios. “Seria extremamente egoísta da minha parte.”

“Você se considera altruísta?” perguntou a outra, quase divertida.

“O altruísmo é uma condescendência dos que se acham melhores que os outros.”

“… E você, com todo seu discurso, não se encaixa no perfil…?”

“Se você tivesse compreendido o que eu falei, ao invés de buscar uma inútil retórica pra invalidar meus argumentos, nem gastaria saliva com uma pergunta tão imbecil.”

“Tão gentil, como sempre…”

“Nem gentil, nem ingênua, nem altruísta, nem divina, nem satânica. Veja, eu quase já não acredito em adjetivos.”

“No que você acredita, então?”

“Não acredito. Não dou crédito. Entende a etimologia?”

“Acho simplista essa sua tradução.” Disse a outra, desapontada.

“Acho simplista o jeito que você tenta plantar em mim uma semente de crença e propósito, achando que me ajuda de algum jeito.” Retrucou ela, a raiva brotando das veias e pulsando nas artérias. “Por acaso sabe quanto tempo levei pra me sentir plena com a verdade?”

“Você não sabe se essa é a verdade.” Disse a outra, em desafio.

“Não existe isso de ‘A Verdade’, realmente. Isso é balela. Existe só a nota que conflui em ressonância com seus ossos. Isso é a verdade.” Suspirou. “Ao menos até que inventem um soro ou um chip que seja capaz de incutir uma crença inabalável nesse cérebro carbônico que nos cabe… Me deixe com a minha paz de espírito.”

“Paz? Se tudo o que você diz é tão perturbador…!”

“Paz. Paz porque não estou mais em busca de propósito de objetivo, de finalização, de roteiro, de clímax, de nada. Entende? Estou aqui, Está bom. Não me fale de mais nada nem do algo mais, por favor. Você vem cheia de múltiplas verdades, condescendência, amor, propósito… Como se isso fizesse parte da paz. Mas sabe o quê? Estes são todos princípios de guerra, conflito, carnificina. Eu quero paz e a paz é uma árvore seca, num jardim marrom e tranquilo. Então faça um favor a nós duas: afogue essa merda desse seu ego inquieto e insatisfeito numa garrafa de gim de baixo teor calórico. Aceite que não vai me salvar de nada, muito menos de mim mesma, e me deixe viver o pouco que resta em paz, sem essa merda de busca pela felicidade”.

A outra não respondeu. Haviam chegado ao local do evento, onde muitas figuras cobertas de panos pretos transitavam, hora choramingando, hora fazendo o bom e velho networking, sem nunca ultrapassar o nível respeitável entre o luto, a solidez e o desespero.

Ela agarrou um copo de whisky que trafegava nas costas de uma bandeja. A outra imitou seu movimento. Encararam o caixão aberto com o copo entre as mãos.

“Você acha que eles realmente esperam por nós?” perguntou a outra, amedrontada.

“Você esperaria?” perguntou ela.

A outra refletiu por um segundo e meio.

“Não.” Respondeu. A ausência de dúvida destruindo todo e qualquer tipo de fé.

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