Lótus

(Minha tinta está acabando, acho…)
Uma cigarra prende fogo. O céu é profundo de azul escuro. “Distante”, diria meu pai. As quatro estrelas brilhantes formam cruz e a cauda aponta para o sul. Olho pra trás. Lá, distante, está a seta vermelha da bússula, o N da rosa, os mares revoltosos e gélidos do topo desse mundo – que não tem baixo nem cima, só dentro e fora.
E la fora? Olho para cima: vazio, lindo e gélido como o mar escuro. E dentro… Olho para baixo e sinto o tremor quente de Gaya sob meus pés. O N continua brilhando, mas não me diz mais do que o apontar de uma direção. Mais para a direita está o verdadeiro chamariz do meu coração e para lá apontam meus olhos. Nada mais justo, NE.
Por coincidência – velhinha ardilosa e simpática -, há uma porta, coberta de tela e adornada com espirais de ferro. Essas coisas do destino. É a porta de uma casa que mora em mim. Um portão de metal mágico que parece ter o poder de me transportar para um corredor a céu aberto… Uma ponte que dá para um portão, outro portão de ferro, a milhares de kilômetros, kilos e kilos de distância física, mas que está dentro do meu âmago, na abertura da caixa toráxica.
Entro por ele. Olhos fechados, chave de ponta-cabeça. Subo dois lances de escadaria de pedra que tantas vezes já escalei, semi-consciente e trôpega. Há duas portas guardadas pelo deus iluminado que carrega uma espada de proteção. Dentes arreganhados, olhos bem abertos. Escolho a da esquerda porque sei as palavras mágicas pra fazê-la abrir. Coloco a chave, acaricio a fechadura, puxa-empurra… Ela é manhosa!
Caminho por um corredor estreito até o final. Passo por uma chuva de arco-íris e limpo os pés descalços num tapete bordado. São duas passagens, duas portas mais.
O mensageiro dos ventos soa. A última porta se fecha atrás de mim, selando o mundo, mudo. A luz de fora trespassa a cortina e ilumina tudo com um tom amarelo-felicidade. Calma. O céu é branco, a única nuvem que paira filtra os pesadelos e limpa o ar, quase deixa cheiro de pássaro aberto. Há uma menina-mulher sentada na cama. Cabelo negro, trançado, pesado. Sua cabeça se volta para mim. Me aproximo e seus olhos escuros miram os meus, gentis, buracos negros-luminosos (?) cheios do afeto mais puro.

Eu te amo.

Ela me abraça de um jeito que me faz chorar.

Eu te amo.

Acho que é a primeira vez que me digo isso com todo o coração. Uma flor se abre. Desabrocha.

Eu te amo.

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